O processo de implementação da miltefosina para o tratamento da leishmaniose tegumentar no Brasil*

A trajetória de incorporação da miltefosina para o tratamento da leishmaniose tegumentar (LT) no Brasil remonta a aproximadamente dez anos atrás, quando, em 2010, a então Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde (CITEC), deliberou a incorporação do medicamento pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). Nesse mesmo ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) indicou a inclusão da miltefosina na Lista de Medicamentos Essenciais, recomendando aos órgãos regulatórios dos países que priorizassem esse produto dentro dos sistemas públicos de saúde.

Em seguida, passou a viger no país a Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011, que regulamenta sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia
em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. A criação desta lei vetou, em todas as esferas de gestão do SUS, a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro sanitário na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ademais, a lei citada criou a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), em substituição à CITEC. E a normatização das diretrizes desta nova comissão está respaldada pelo Decreto n° 7.646/11, que tem o efeito de regulamentar a composição e as competências da Comissão.

Por fim, a criação do regramento imposto pela mencionada lei de incorporação de tecnologia no SUS fez com que, naquele momento, em que pesasse a
deliberação da CITEC, não se concretizasse a incorporação da miltefosina no SUS.

Em 2016, o Grupo Técnico das Leishmanioses da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde retomou a pauta de incorporação da miltefosina,
solicitando à CONITEC nova apreciação do pleito.

Em 10 de novembro de 2016, o Plenário da CONITEC recomendou, unanimemente, a incorporação da miltefosina ao SUS para o tratamento de pessoas acometidas pela leishmaniose tegumentar, levando o tema à Consulta Pública n° 40 da qual se derivaram seis contribuições de cunho técnico e outras três de experiência ou opinião, sendo que nenhuma delas influiu no mérito da recomendação preliminar.

Não obstante a recomendação unânime, validada pelo resultado da Consulta Pública, o entrave trazido pelo ordenamento jurídico persistia na rota de incorporaçãoda miltefosina, sendo solucionado a partir do Parecer n° 00573/2017, da Consultoria Jurídica (Conjur) junto ao Ministério da Saúde, a qual – restrita aos aspectos de juridicidade – concluiu pela possibilidade jurídica da CONITEC deliberar sobre medicamento sem registro na Anvisa, sob o lastro da Lei n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, a qual dispensa de registro os medicamentos e outros insumos estratégicos quando adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais e para uso em programas de saúde pública pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas.

A Portaria nº 56, de 30 de outubro de 2018, tornou pública a decisão de incorporar a miltefosina para o tratamento de primeira linha da leishmaniose tegumentar no âmbito do SUS. Até a incorporação, as alternativas terapêuticas disponíveis eram de uso exclusivamente parenteral e, embora eficazes, fatores limitantes, como a estreita janela terapêutica, o tempo de tratamento e a necessidade de que fosse assistido no nível ambulatorial ou hospitalar, atrelado à vulnerabilidade social da população mais suscetível à doença, favoreciam a alta taxa de abandono à terapêutica, além do maior risco de evolução ao óbito em consequência dos
eventos adversos causados pelos medicamentos disponibilizados.

A garantia da oferta do primeiro tratamento de uso oral para LT no SUS configura, portanto, uma resposta aos esforços para que mais brasileiros possam ser assistidos e tratados com segurança e eficácia, com abordagens menos invasivas, mais acessíveis e que promovam a adesão ao tratamento.

A Portaria n° 3.047, de 28 de novembro de 2019, incluiu a miltefosina no Anexo II da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename,
2020), atribuindo a competência do seu financiamento, aquisição e distribuição aos estados e Distrito Federal e ao Ministério da Saúde por intermédio do Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica.

Ainda no rol dos aspectos regulatórios e em face do potencial de teratogênese, no Brasil a miltefosina foi enquadrada à Lista C1 da Portaria n° 344, de 12 de
maio de 1998, a qual aprova o regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.

A Resolução da Anvisa – RDC n° 337, de 11 de fevereiro de 2020, que trata do enquadramento da miltefosina à portaria de controle especial, estabeleceu critérios nacionais para a prescrição, dispensação e uso por pacientes em idade fértil, trazendo, ainda, aspectos sanitários relacionados ao rótulo e bula do
medicamento, entre outros.

Com base nesse regramento e considerando as evidências disponíveis, as orientações sobre o uso da miltefosina para o tratamento da LT no SUS, bem como acerca do seu monitoramento e controle, foram exaradas na Nota Informativa n° 13/2020- CGZV/DEIDT/SVS/MS.

Atualmente, na rede pública de saúde brasileira, a miltefosina está indicada para o tratamento da LT em primeira linha, sendo advertido o seu emprego
terapêutico para forma mucosa da doença, orientando-se que, nesses casos, a terapêutica seja avaliada por médico especialista. O mesmo se aplica às
crianças com peso corporal inferior a 30kg, pacientes em idade reprodutiva com possibilidade de gravidez e pessoas convivendo com a coinfecção Leishmania/
HIV, para as quais se admite o uso de miltefosina apenas quando caracterizada falha do tratamento convencional.

O esquema posológico preconizado recomenda a administração de 2,5 mg/ kg/dia de miltefosina 50 mg, por via oral, dividida em duas a três doses diárias, até o limite de 150 mg/dia (três cápsulas/dia), por 28 dias. Ressalta-se a importância de que as doses sejam administradas nas refeições, objetivando minorar os efeitos gastrointestinais indesejáveis, principalmente náuseas e vômitos. Para pacientes com peso corporal entre 30 e 45 kg, a dose diária recomendada é de 100 mg (duas cápsulas/dia).

O tratamento é realizado em duas etapas de 14 dias cada, com retorno médico para avaliação no 13º e no 28º dia do tratamento. Esse fluxo proposto visou a garantia da segurança do paciente, oportunizando o seu acompanhamento durante o tratamento e ao final dele, a fim de que sejam monitoradas sua evolução e adesão e mitigados os riscos de erro de administração.

Outro aspecto levado em consideração no processo de estruturação da implementação do tratamento na rede pública de saúde foi a sobra e o descarte. Devido ao enquadramento à Portaria n° 344/1998, fica vetado o fracionamento do medicamento à base de miltefosina pelos serviços de saúde; assim, a estratégia adotada foi a reembalagem nacional. Por meio de uma parceria entre o Ministério da Saúde e o laboratório Farmanguinhos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), os blisters foram reacomodados em embalagens secundárias contendo 42 cápsulas cada, o que permite que cada paciente receba exatamente o quantitativo necessário para o seu tratamento por 14 dias (correspondente a uma etapa).

Previa-se, contudo, a possibilidade de sobra do medicamento nos casos em que o esquema terapêutico se restringisse ao uso de duas cápsulas
diariamente. Para esses casos, o Ministério da Saúde adotou o Termo de Devolução. Na dispensação, paciente e farmacêutico assinam o documento onde ambos se comprometem em assegurar a devolução ou recolhimento da eventual sobra, para que os serviços de saúde possam lhe conferir o devido
descarte. As sobras do medicamento são averiguadas pelos serviços a cada retorno médico, durante o tratamento.

Enquadra-se à categoria “paciente em idade fértil” quem se encontra entre a menarca e a menopausa (primeira e última menstruação, respectivamente).
O teste sensível para dosagem de beta HCG é realizado imediatamente ao início do tratamento e repetido mensalmente, até o final dos quatro meses
após conclusão ou interrupção do tratamento. Para pacientes com ciclos menstruais irregulares, o teste de gravidez é realizado a cada duas semanas, até o final dos quatro meses após conclusão ou interrupção do tratamento. Orienta-se que a dosagem de beta HCG seja realizada até 24 horas antes do início do tratamento. Fora desse prazo, o resultado é considerado inoportuno e, por questões de segurança, recomenda-se que seja repetido. Não se enquadram nas exigências relacionadas acima pacientes que tenham realizado procedimento de esterilização definitiva ou com menopausa confirmada há
no mínimo dois anos. Na ocorrência de gravidez durante o tratamento, o uso da miltefosina deve ser imediatamente suspenso e a ocorrência notificada aos
órgãos competentes.

Decorrida toda a trajetória para a incorporação da miltefosina, atualmente a rede pública de saúde brasileira vivencia os primeiros meses de garantia da oferta
do medicamento. Este é um marco comemorado por todos os atores envolvidos e especialmente pelos usuários do SUS, que passam a dispor do primeiro tratamento de uso oral no contexto da LT.

Diversos países enfrentam problemas relacionados ao acesso à miltefosina, sobretudo quanto ao preço e à disponibilidade comercial. Hoje o SUS conta com a
capacidade de oferta da miltefosina para cerca de 15% dos casos de LT conhecidos e vislumbra-se a ampliação dessa capacidade para 25% para o próximo ano.

O medicamento está disponível em todo o Brasil e, nesta primeira etapa de implementação da tecnologia, o acesso
é restrito aos serviços referenciados. Os próximos passos estarão concentrados na qualificação, ampliação e sustentabilidade do acesso dessa tecnologia no SUS.

 

Artigo originalmente publicado no Boletim Informativo da redeLEISH

*KATHIELY MARTINS DOS SANTOS,
LUCAS EDEL DONATO, MARCIA LEITE DE SOUSA GOMES,
GT-Leishmanioses
Coordenação-Geral de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial – CGZV
Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis – DEIDT
Secretaria de Vigilância em Saúde – Ministério da Saúde (SVS/MS), Brasil

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